O amor nos tempos de Auschwitz






O polonês Israel Arbeiter passou cinco anos em poder dos alemães. Sobreviveu ao tifo e se fingiu de morto para não ser executado. Nos campos nazistas, perdeu a família - mas achou a mulher de sua vida

Adriana Maximiliano e Bernardo Weaver

Dentro da fria lógica dos nazistas, que tatuavam números em seus prisioneiros, ele era o A18651. Ela era o A14016. Foi num campo de concentração – Starachowice, na Polônia – que Israel Arbeiter, 81 anos, e Anna Balter, 80, iniciaram uma história de amor que dura até hoje. Ambos judeus e poloneses, eles se conheceram em 1940, enquanto realizavam trabalhos forçados para os alemães. Depois de contrair tifo e sobreviver a uma execução de prisioneiros, Arbeiter ficou escondido no alojamento onde estava sua família. Só não morreu de fome porque Anna, clandestinamente, enviava-lhe pequenas porções de pão.

Em 1942, Arbeiter foi separado da família e de Anna e levado para Auschwitz, também na Polônia. Em 1944, foi transferido para outro campo de concentração, na Alemanha. No ano seguinte, às vésperas da derrota dos nazistas, sobreviveu a uma das “marchas da morte” de Hitler, em que os prisioneiros eram obrigados a andar dias sem descanso ou comida. Fugiu, escondeu-se na floresta e foi achado por tropas aliadas. Ainda em 1945, Arbeiter partiu em busca de Anna. Roubou uma motocicleta, cruzou a Alemanha até o campo de refugiados em que ela estava e a pediu em casamento. Hoje, aos 81 anos, ele se orgulha de dizer que ela é sua “boneca” – usando uma das poucas palavras que sabe em português.

Comerciante aposentado, Arbeiter é presidente e fundador da Associação Americana dos Sobreviventes do Holocausto da Grande Boston. Ele e Anna moram nos Estados Unidos desde 1949, onde tiveram três filhos e três netos. E ainda exibem nos braços as tatuagens com os números. “Não as tiramos porque não queremos esquecer jamais o que passou”, diz Arbeiter, que se esforça para transmitir às próximas gerações as piores lembranças de sua vida. “Daqui a dez, 20 anos, não haverá mais nenhum sobrevivente vivo. Não podemos deixar a história morrer com a gente.”

História – Como era sua vida antes da guerra?

Israel Arbeiter – Nasci em 25 de abril de 1925, numa família de classe média da cidade de Plock, na Polônia. Meu pai era alfaiate. Minha mãe era dona-de-casa e cuidava de mim e dos meus quatro irmãos. Ainda era criança quando comecei a ouvir coisas ruins nas ruas, manifestações anti-semitas, ofensas... Mas não me importava. De repente, quando a guerra irrompeu, ficamos proibidos de sair do país e da cidade. Até andar na rua passou a ser perigoso. Meu pai não queria abandonar tudo e seguir para um lugar desconhecido, correndo o risco de ser morto no caminho. Ele dizia que tínhamos que ficar tranqüilos e continuar perto dos nossos amigos, da comunidade. Até que um dia, no meio da noite, os alemães invadiram nossa casa.

A partir daí, o que aconteceu?

Era inverno, fevereiro de 1940. Eu tinha 14 anos. Acordei com os alemães dentro de casa, avisando que tínhamos cinco minutos para pegar o que quiséssemos e ir para a rua. Fomos levados para um gueto em outra parte da cidade, onde estavam todos os outros judeus de Plock. Era um lugar cheio de casas pobres. Vi meus pais, tios e nossos amigos perderem tudo, inclusive as esperanças, até que um trem de carga levou todo mundo para o campo de trabalho forçado de Starachowice, no leste da Polônia. Lá eu comecei a trabalhar como ajudante dos soldados alemães. Todos os dias, às 7 da manhã, engraxava as botas que eles deixavam fora do alojamento. Depois, eu faxinava e carregava lenha. Também capinava e fazia serviços de manutenção. Eu odiava. Era um garoto de classe média e odiava trabalhar para os algozes do meu povo. Mas não tinha escolha: se não fizesse, morria. A comida que eu recebia em troca do trabalho era um pouco de pão e sopa. Migalhas que mal davam para o meu sustento.

O que o senhor fazia quando não estava trabalhando?

No fim do dia, voltava para o alojamento e ficava com minha família. Todos viviam com muito medo. Foi em Starachowice, ainda em 1940, que conheci uma menina chamada Anna, nascida em 1926, na cidade polonesa de Lodz. Ela era ajudante na cozinha do alojamento alemão e faxineira. Enquanto ela limpava e eu consertava coisas, surgiu entre nós um laço importante.

O senhor esteve perto de morrer?

Depois de um tempo, virei escravo na fábrica de munição. Era muita humilhação, porque aquelas balas estavam servindo para levar adiante uma causa que defendia a morte do meu povo. Trabalhava tanto, tanto, que fiquei doente várias vezes. Quando contraí tifo, tive que ir para um alojamento separado, em quarentena. Lá, se um quarto ficava lotado, os nazistas matavam todos os doentes. Certo dia, o meu encheu. Éramos 68 pessoas. Os soldados vieram à noite e atiraram. Mataram 67. Nenhum tiro me atingiu, mas eu me joguei no chão como se tivesse morrido. Quando mandaram outros judeus recolherem os corpos, pedi ajuda a eles. O chefe do grupo era um policial judeu, o capitão Abraham Wilczek. Esses homens, que tinham a função de policiais no campo de concentração, às vezes eram doces, às vezes eram bárbaros. Eu não sabia o que esperar. O capitão disse que não ia me entregar, mas me mandou de volta para o alojamento do tifo. Com o fio de voz que me sobrava, falei: “Deus me salvou uma vez. Não acredito que vá me salvar de novo. Os alemães vão me matar na próxima vez”. Ele prometeu me ajudar, mas disse que naquele momento eu teria que ficar com os outros doentes para não contaminar os trabalhadores saudáveis.

E ele cumpriu a promessa?

Sim, me curei e ele me tirou do alojamento. Mas eu ainda não tinha forças para trabalhar, então não podia receber comida. Cada vez mais fraco, fiquei escondido no alojamento da minha família. Foi aí que Anna Balter me salvou. Ela começou a contrabandear alimentos: através da cerca em volta do meu alojamento, ela entregava pão para meus irmãos, que o levavam para mim. Graças a Anna eu me recuperei e voltei a trabalhar. Nessa época, continuar vivo era uma conquista. E tudo era tão triste que eu não acreditava que a situação poderia piorar tanto de um dia para outro.

Mas piorou muito...

Sim. O pior momento foi em 1942, quando os nazistas decidiram que a chamada “solução final para a questão dos judeus” era o assassinato em massa. Foi aí que eles resolveram separar minha família. Eu e meu irmão mais velho, Mack, por sermos mais fortes e aptos para o trabalho escravo, ficamos. No dia 26 de outubro, os alemães levaram meus pais, meus tios e meus irmãos mais novos para o campo de concentração de Treblinka. Mataram todos com cianureto numa câmara de gás. Eu fui separado do meu irmão e enviado para Auschwitz.

Como era o campo de Auschwitz?

Olha, se eu ficar dez horas falando, você ainda não vai ter idéia do que era aquele campo de concentração. A lógica daquela instituição é totalmente distinta de qualquer outra coisa vigente no mundo real. É como se fosse uma fábrica ou um banco que, em vez de emprestar dinheiro ou produzir coisas que melhorassem o mundo, apenas produzisse cadáveres. Mortes repetidas, em escala industrial, cujos sobreviventes só se explicam pela necessidade de escravos para manter em funcionamento o aparato nazista. As instalações incluíam cinco câmaras de gás que funcionavam sem parar, durante 24 horas, sete dias por semana. Os prisioneiros também morriam de fome e exaustão ou eram cremados vivos.

Quando o senhor percebeu que sua vida poderia mudar?

Eu continuei fabricando munição por mais dois anos, até que a fábrica começou a ser desativada. A invasão da Polônia pelos russos, no fim de 1944, marcou o início do fim do meu sofrimento. Os alemães queriam esconder de qualquer forma as marcas do que estavam fazendo com meu povo. Fecharam a fábrica e transferiram os judeus para a Alemanha em trens de transporte de gado. Fui para um campo de concentração na cidade de Tailfingen. Lá trabalhei num hangar, fazendo manutenção de aviões. Quando o campo foi bombardeado pelos americanos, em 1945, os alemães mandaram todos os judeus embora, mais uma vez tentando encobrir o massacre. Fomos levados para a chamada “marcha da morte”, nas estradas em direção à Áustria.

Como foi o percurso?

Os soldados alemães nos mandaram andar até o sul do Tirol, na Áustria. Quem sobrevivesse teria que trabalhar como escravo numa mina de sal. Foram três dias e três noites sem água, sem comida, sem parar. Aqueles que caíam eram largados pelo caminho. De repente, veio um ataque aliado e os pelotões alemães que nos escoltavam fugiram. Eu e meus amigos corremos para o mato. Estávamos na Floresta Negra. Ficamos ali por mais alguns dias até que tropas aliadas apareceram e nos salvaram. Os franceses me deram comida, água e abrigo. Perguntei qual era a data e um dos soldados disse: 25 de abril de 1945. Meu aniversário de 20 anos!

E cinco dias depois, em 30 de abril, Hitler se suicidou...

Pois é, a sorte tinha mudado de lado. E a minha ainda ia melhorar muito nos dias seguintes. O exército aliado me mandou para um campo de refugiados de guerra no sul da Alemanha, perto de Stuttgart. Lá a grande maioria era de judeus. Quando nos apresentaram uma lista com as pessoas que estavam em outros campos, meu irmão ainda não aparecia. E eu não sabia o nome completo de Anna. Só tinha o número que os nazistas tatuaram em seu braço, A14016, e o primeiro nome. Descobri que ela estava em Bergen-Belsen, perto de Hannover. Eram mais de 1000 quilômetros de distância de Stuttgart. Resolvi, então, confiscar uma motocicleta de um alemão que estava passando perto do campo. Em dois dias de viagem, cheguei a Bergen-Belsen. Era maio de 1945. Fui lá para dizer: “Obrigado por salvar minha vida”. Eu precisava falar para ela que aquela comida que passava pela grade todas as noites tinha me mantido vivo nos piores momentos.

O senhor estava apaixonado?

Eu não sabia se era paixão ou apenas gratidão. Quando a encontrei, a chamei para um passeio. Era maio, a primavera já começava a desabrochar, e o norte da Alemanha fica muito bonito nessa época. Anna disse que queria ir comigo, mas tinha um pequeno problema: no quarto dela havia apenas um par de sapatos, que ela e mais quatro meninas revezavam entre si. Como não era o dia de Anna usá-los, ela não poderia ir. Eu, que nunca fui de desistir fácil, chamei a menina que tinha direito aos preciosos calçados e lhe dei um dinheirinho para trocar de dia com Anna. Dito e feito. Passeamos de moto e fomos a uma loja de sapatos, onde lhe comprei um par. Alguns dias depois, convenci Anna a ficar no campo em que eu estava, onde as condições de vida eram muito melhores. Meu irmão também tinha sido levado para lá. No dia 26 de agosto de 1946, pedi a mão de Anna em casamento e ela aceitou.

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