Fé e razão são opostas?

O conflito entre fé e razão está presente desde muito cedo na história da igreja cristã. De fato, parece quase impossível, pelo menos para muitos cristãos, a idéia de reconciliar a revelação com a razão. A idéia que se tem, para parafrasear o teólogo anglicano Alan Jones, é que “quem pensa não tem fé, e quem tem fé não pensa”. Isso parece paradoxal, pois sem dúvida, os maiores pensadores da humanidade são encontrados dentro do universo cristão.
No texto de Atos 27:9-11 sobre o naufrágio por que passou Paulo, vemos esse conflito em evidência. Por um lado, temos o apóstolo Paulo valendo-se de uma revelação divina sobre os perigos iminentes que corria o navio no qual ele era transportado. Quando o apóstolo disse “vejo que a viagem vai ser trabalhosa”, não há duvidas de que ele se referia a uma revelação de Deus sobre a viagem da qual era participante. Em palavras mais simples, Paulo teve uma revelação de Deus sobre o que poderia acontecer naquela viagem. Por outro lado, o texto sagrado mostra que "o centurião dava mais credito ao piloto e ao mestre do navio do que ao que Paulo dizia". O centurião preferiu crer mais na técnica dos marinheiros do que em Paulo. Em outras palavras, o centurião preferiu acreditar mais na razão que na revelação.
No período pós-apostólico, o debate entre fé e razão cresceu em amplitude. A palavra razão nesse período soava como sendo um sinônimo de filosofia grega. Todavia, para muitos pais apostólicos, essa aproximação entre Atenas e Jerusalém cheirava a apostasia. Tertuliano, por exemplo, que foi bispo de Catargo, perguntava em tom de denúncia: "Que relação há entre Atenas e Jerusalém? Que acordo há entre a Academia e a Igreja?" Para ele, a fé cristã e a filosofia grega eram irreconciliáveis.
Por outro lado, Justino Mártir, um ex-discípulo de Platão, acreditava que era sim possível esse diálogo. Em sua apologia, ele escreveu: "Eu sou cristão, glorio-me disso e, confesso, desejo fazer-me reconhecer como tal. A doutrina de Platão não é incompatível com a de Cristo, mas não se casa perfeitamente com ela, não mais do que a dos outros, dos estóicos, do poetas e dos escritores. Cada um deles viu, do Verbo divino que estava disseminado pelo mundo, aquilo que estava em relação com a sua natureza, chegando desse modo a expressar uma verdade parcial. Mas, à medida que se contradizem nos pontos fundamentais, mostram que não estão de posse de uma ciência infalível e de um conhecimento irrefutável. “Tudo aquilo que ensinaram com veracidade pertence a nós cristãos”.
Tertuliano e Justino Mártir são exemplos de pensamentos diametralmente opostos. No período medieval, esse debate é retomado com força, e dois expoentes do pensamento ocidental vão se sobressair: Agostinho e Tomás de Aquino. Agostinho viveu no início da Idade Média, enquanto Aquino, no final. Se, por um lado, Agostinho, que foi bispo de Hipona, vai recorrer ao pensamento platônico para fundamentar seus argumentos teológicos, por outro Aquino irá cristianizar os ensinos de Aristóteles. Ao recorrer à filosofia aristotélica para fundamentar seu raciocínio, Aquino, por exemplo, dizia que "os argumentos não devem ser aceitos pela autoridade de quem diz, mas pela validade do que se diz".
Enfim, é possível compatibilizar a fé com a razão? Qual o perigo de se formar um abismo entre ambas?
Em primeiro lugar, o problema está na grande confusão que se faz entre razão e racionalismo. O primeiro termo diz respeito à nossa capacidade de julgar, de pensar, de argumentar etc. A razão é salutar. Afinal, somos seres racionais. Fomos feitos para pensar. René Descartes dizia, na introdução de seu Discurso do Método, que todos nascemos com o bom senso. Porém, racionalismo é um termo aplicado à escola de pensamento que diz não haver nenhum conhecimento válido fora da razão humana. Em palavras mais simples, aquilo que não puder ser explicado de forma racional deve ser rejeitado. Nesse caso, a revelação, que se encontra nos domínios da fé, não pode ser aceita como uma forma de conhecimento válido. Essa forma de pensar, que é filha da modernidade, é de fato a mãe do materialismo e do ateísmo.
Quando se privilegia a revelação em detrimento da razão, cria-se um campo propício para o surgimento de práticas incompatíveis com o cristianismo bíblico. Por exemplo, o livro Libertação da Teologia, escrito por um autor neopentecostal, diz: "Todas as formas e todos os ramos da Teologia são fúteis. Não passam de emaranhados de idéias que nada dizem ao inculto; confundem os simples e iludem os sábios. Nada acrescentam à fé; nada fazem pelo homem senão talvez aumentar sua capacidade de discutir e discordar". Que princípio irá nortear uma igreja que acredita que a razão, que aqui é entendida como sendo o pensamento teológico sistemático, é fútil? Não irá essa igreja ter um conjunto de crenças práticas fora do modelo bíblico?
Essa forma de pensar é muito comum nos grupos restauracionistas. Hannah Whi-tall Smith, por exemplo, em seu livro O segredo cristão de uma vida feliz, escrito em 1870, acreditava que "o problema com a maior parte da religião de hoje em dia é sua extrema complexidade", acrescentando que a verdadeira religião evita "dificuldades teológicas [e] dilemas doutrinários (...) Nenhum treinamento teológico e nenhuma visão teológica em particular são necessários".
Em segundo lugar, a confusão é gerada por conta daquilo que em filosofia se denomina "erro de categoria". A fé e a razão não são excludentes, mas sem dúvida pertencem a categorias diferentes. Como explicar, por exemplo, a cura de um paciente terminal de câncer recorrendo a argumentos racionais? A velha máxima de que milagres não se explicam ainda é válida. De fato, Paulo diz isso com outras palavras: "Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente", l Co 2.14
Quando nos conscientizarmos que somos formados por Deus tanto para crer (revelação) como para pensar (razão), então cessará o conflito. A propósito, se o comandante do navio tivesse tido o bom senso de dar ouvidos ao que Paulo dizia, o naufrágio teria sido evitado.
Publicado no jornal Mensageiro da Paz - ano 78 - nº 1479 – Agosto de 2008 – Pg. 16
Confira também:
ótima matéria.não podia sair deste sair sem parabenizar quem o fez.Parabéns.Não sabia nada de filosofia medieval mas agora já tenho uma base.Obrigado.
ResponderExcluir